PUBLICADO EM 21/07/20

Leia o conto "A última tentação de Capi"

Dentro do projeto Sesc Paraty em Rede, lançamos a proposta para autores e autoras escreverem, coletivamente, um conto. A seguir, você confere o resultado, produzido por Brisa de Souza, Elisa Pereira, Flávio de Araújo, Nathalia Leal e Ovídio Poli Junior, que também fez a revisão do texto final. 

 

A última tentação de Capi

O Diabo não imaginava quantos seguidores atingiria tão rapidamente em uma única postagem do instagram. O olhar penetrante que descia quase que escorrendo até o umbigo foi fundamental no seu sucesso. Ele desejava sim, planejava sim, que toda luxúria do mundo se estendesse a seus pés... não literalmente.

O pobre-diabo desconhecia que a vaidade e a luxúria andam sempre de mãos dadas, e a alguns passos do abismo. Começou a experimentar espasmos de satisfação a cada milhão de curtidas. Não era difícil, as pessoas não estavam em busca de grandes informações e conhecimentos. Elas queriam se entreter, se alienar de um mundo aparentemente sem sentido. E isso ele fazia com maestria, oferecia a elas um caminho de fuga de suas vidinhas patéticas.

Nunca foi tão fácil exercer domínio sobre as pessoas; já que elas mesmas exigiam aos gritos que fossem dominadas! Então, sorrateiramente, quando a fama do Cabroco firmava-se sólida no terreno pantanoso da vaidade humana, começaram a acontecer coisas estranhas.

Primeiro foram os sonhos que povoavam sua mente: antes fulgurosos e coroando conquistas árduas e tenazes num cenário de poder, agora o agitavam em noites tempestuosas, nas quais ele acordava com calafrios. Depois foram os tremores e as dores musculares: os braços se contorciam e os tendões começaram a inflamar, fazendo a dor percorrer o corpo como um prisioneiro em fuga. O que seria aquilo? Por que toda aquela aflição e aquele tormento num momento em que estava prestes a colocar a humanidade a seus pés? Seria algum tipo de loucura que se aninhava como uma gralha agourenta em seus pensamentos? Ou poderiam ser sinais de que a velhice finalmente chegava?

O Capiroto parou de postar, abandonou aquele museu do efêmero e começou a voltar-se aos temores que o afligiam. Não o agradava mais aquele fumo de rolo que se desdobrava diante dos seus olhos, fazendo do ecrã do celular um carrossel de ilusões mesquinhas. Não, ele não viera ao mundo para ser coadjuvante, não viera a essa medíocre esfera que vagava perdida em meio ao negrume do universo para deixar-se dominar por algo tão tosco. Submeter os homens não era assim nenhuma grande façanha, até mesmo Deus passara parte da adolescência nesse empreendimento e deixou isso de lado quando curou as espinhas e arrumou outro emprego.

Bons tempos aqueles em que os dois discutiam livros e jogavam futebol no colégio, sem ânsias de domínio e autopromoção. A sala de aula era tediosa e os professores pensavam que aquela modesta segurança que o governo lhes oferecia perduraria por toda a eternidade ou até Judas perder as botas, mas o pequeno pátio de cimento onde os garotos todos corriam feito doidos atrás de uma bola de capotão e a biblioteca ao ar livre embaixo das velhas figueiras eram espaços iluminados pelo sol.

– Capi, você acha que um dia isso tudo vai dar certo? Isso aqui não tem jeito não...
– Tá perdendo a esperança já, véio? Tá falando do quê: da escola, do país ou do planeta?

Os professores sequer imaginavam que aqueles dois amigos inseparáveis e que tinham apenas alguns anos de diferença entre si traçariam destino tão diverso em seus caminhos. A amizade não apenas se penduraria no paradoxo entre o bem e o mal, até porque ambos são relativos. Talvez se Deus tivesse parado um pouco pra pensar na furada em que iria se meter ao defender o livre-arbítrio anos mais tarde, mas num mesmo livro mandar escrever: Tudo está descoberto e exposto diante dos olhos daquele a quem havemos de prestar contas (Hebreus 4:13)... Ele cairia em demasiada crise existencial por isso.

– Deus sempre teve problemas de autoestima e ares de propriedade sobre as coisas, bem a cara do autoritarismo. Ele sempre precisou de plateia e defesa, nunca entendi os julgamentos da indiferença, e a lógica de persuadir o estado de liberdade individual. Deve ser por isso que ele me expulsou.
Capi cresceu questionando a ordem “natural” da vigilância e da felicidade aprisionada, ele não entendia o sentido das hierarquias, das submissões e as celas cognitivas do pensar e do agir. Enquanto Deus reafirmava papéis de controle e uma posição de poder, o Diabo seguia sendo o campo questionador e libertário da coisa, arrogante, mas desafiador.
– Não subestimo a desesperança do véio, mas também não desacredito.

E Capi repensava sua serventia nada modesta, aliás, alguém marcado desde o início da eternidade tinha que apertar a função cool, mesmo sendo-lhe reservadas as chamas inapagáveis do Hades. Capi romperia a todo custo o apêndice inflamado do Eterno, pois apenas a ele coube desvendar o segredo do sexo dos anjos – e tendo a chave da porta não giraria a maçaneta? Não apenas girou, mas pôs uma serpente enxertada com o mesmo pó dos homens, como protetora dos portões do Éden. Aliás, é preciso o entendimento de que após o pecado original o casalzinho foi expulso, mas Capi não, Capi sempre teve acesso por entre a galhada da árvore do conhecimento do bem e do mal, fora criado para desempenhar um script. Mas bastava, exauria-o essa subserviência de querubim ungido, compreendendo que ele sim é que tinha a plenitude do livre-arbítrio, pois diferente do outros anjos e até mesmo de El Shaddai e de seu filho unigênito, era Capi tão apenas Capi que tinha escolhas, pondo muita coisa em jogo, como bem disse o profeta Ezequiel, Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônia, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro, e mesmo assim, desejou ser igual a Deus, porque querer sê-lo era a única forma de conspurcar suas digitais no acordo sacro; preferindo a iniquidade, saindo daquele museu geológico absurdamente asséptico e clean, execrando a concepção de ser mero coprólito entre minerais. Pôde assim experimentar pela primeira vez o sugo fresco das putas, as lacerações da epiderme, a estranheza lhe revolvendo o útero ao impingir o primeiro assassinato. Ele tão ele apenas, o primogênito das sensações que nem Deus havia vivenciado como o ódio gratuito aos desvalidos, a vingança como oblação e o revigorante ócio.

Diferente das criaturas do segundo escalão, o filho de Belial não era refém das horas, transitando mesmo antes do gênesis e apocalipse, como máquina do tempo de si mesmo. E então, avesso à imposição do destino histórico, propôs um encontro conclamando o Todo-Poderoso a fim de esfregar certas injustiças na face desse a quem chamavam também Jeová-Tsidkenu. O Pai aceitou o embate e chegando ao pináculo do suntuoso Burj Khalifa deparou com um menino azul, sentado à beira do abismo. Capi, ou Trinca-6, ou Pé-Canho, era também a variação imagética de seus muitos nomes, e para não ficar por menos, o Todo-Poderoso sentou-se ao seu lado transfigurado num filhote de elefante. Por optar não esconder o encontro, a TV Al Jazira chegou primeiro após receber um zap dos infernos, transmitindo ao vivo e repetindo pelas redes sociais, “Todo o olho o verá”, era a chamada. Capi nunca deixou sua soberba de lado.

– Não tentarás o Senhor teu Deus, já fizeste isso diversas vezes.
– Não tive escolha, ó Todo-Poderoso, no entanto já não posso tentar-te, pois em ti não acredito mais. Eis à tua frente um ser pleno, eu tenho algo que não tens, a liberdade.
– Diz o que queres, e tão apenas dessa vez, a título de não mais me julgares como injusto, faz um pedido, Pai da Mentira, e eu atenderei ao desejo do teu coração de fel. 
– Decerto o deus onisciente já sabe dos meus desejos. Tu foste capaz de amar os homens moldados com o lodo da terra, os mesmos que rejeitaram teu paraíso artificial e rejeitaram teu filho unigênito. E cumprindo tabela, entregaste teu filho para ser morto por eles. Entretanto sempre foi mais do mesmo: alguém te ofende e diante disso a necessidade do desagravo. O cordeiro é imolado como expiação, teu filho ressuscita e bingo! Todos se resolvem. Vês? Tu criaste um plano de redenção para todos, mas não para mim, eu sou a bucha desse canhão, sou o único predestinado imperdoável.
– E o que queres enfim Cramulhão, uma startup, quem sabe ser coach do Google?
– Não, bem menos que uma reparação histórica, quero apenas ser demasiadamente humano: tenro, frágil e ingrato. Meu desejo é que tu me tornes mortal, como eles. Mas um adendo, ó dadivoso, que após me concederes tal desgraça tu te esvazies da tua onisciência sobre o meu intento, que não saibas de mim: quando e onde estarei.

Ardiloso, Deus sabia que o Cão podendo voltar no tempo e no espaço, e como criatura mortal, teria a chance de se tornar qualquer homem ou mulher da história, alguém até próximo do Cristo, Maria Madalena ou mesmo o ladrão arrependido da cruz quem sabe. E assim, exaurido de sua imortalidade, entraria automaticamente no plano divino de redenção, pois Capi sabia que o Criador era refém do desígnio de João 3:16. Jogada de mestre: ganharia o perdão e novamente a imortalidade, pensou Deus. Comovido, passou a tromba sobre sua cabeça, lhe concedendo enfim o tal pedido como redenção e fim do ciclo etéreo.Sim, o amor de Deus era capaz de penetrar até o coração mais ressequido de amarguras. 


Trending topics! Cerca de seis bilhões de pessoas se abraçavam emocionadas, curtindo e compartilhando as atualizações, quando então viram Capi, o menino azul, de pé no alto da torre mais alta do mundo, abrindo os braços risonho e mortal, ser empurrado pelo elefante.

 

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