Publicado em 01/06/2020

“Graças à arte, a gente não está surtando”

Bianca Martins tem 24 e gosta de se apresentar com o nome da cidade onde nasceu. “Costumo me apresentar como Bianca Paraty”, diz. Wanessa Malvar, 25, é carioca e mora em Paraty. As duas são atrizes e idealizadoras da Companhia Biwã de Teatro, grupo que une as tradições paratienses às artes cênicas, numa proposta de valorização da cultura popular.

Em março de 2020, dentro da programação do projeto Maré das Artes, Bianca e Wanessa apresentaram o espetáculo Sobrados - Uma história de Paraty. Naquela noite, todos os lugares na plateia do Sesc Santa Rita estavam ocupados por gente que queria ouvir os causos e conhecer um pouco mais da história da cidade. Antes de entrarem em cena, Bianca e Wanessa passaram a tarde montando o cenário, organizando tijolo sobre tijolo - cada um representando uma casa do Centro Histórico, pendurando bandeirinhas e espalhando pelo chão os elementos usados na apresentação, como rede de pesca, chapéu de palha e pandeiro. Além de atrizes, elas são as autoras dos textos, produtoras, cenógrafas e faz-tudo da Companhia Biwã de Teatro. 

Como muitos artistas, as atrizes estão vivendo um período de pausa nos projetos. No universo artístico, um dos primeiros efeitos da pandemia do coronavírus foi o cancelamento de espetáculos musicais e teatrais. “A gente, nessa quarentena, não está se preocupando muito e nem se exigindo ser produtiva”, diz Wanessa. O tempo livre tem aplicado nas atividades de produção e outras tarefas “de escritório”, elas explicam. 

O trabalho relacionado aos fazeres artesanais, característicos da cultura popular, ensina sobre o respeito ao tempo. Nesta entrevista, realizada pelo Whatsapp, elas falam sobre esse e outros aprendizados. 
 
- Como as identidades paratiense e caiçara refletem no trabalho artístico da companhia?
Bianca: O que a identidade da cultura caiçara passa de mais importante pra gente seria como lidar com a cultura como um trabalho. A Companhia Biwã vem buscando essa autonomia de linguagem e isso acaba indo para todos os níveis, desde se autoproduzir, escrever um texto próprio, se autodirigir, atuar, a própria relação com a música, com a musicalidade que a gente trabalha. Eu acho que tudo parte desse modo de fazer artesanal e com tempo necessário para cada coisa, principalmente nos processos de criação. A gente entende que não tem fim. Um espetáculo pronto, uma coisa finalizada, na nossa linguagem não existe. Sempre pode entrar um caos novo, mudar a sonoplastia, essas pequenas coisas, mexer na história. E são inúmeras as influências no trabalho, mas sempre remetendo ao tradicional e de origem, igual Paraty, que tem sua própria história e a mantém viva, isso sem deixar de se reinventar. Seria basicamente isso, esse forte tradicional que a gente usa como matriz para iniciar qualquer trabalho de criação. 

- Quais são as tradições de Paraty que influenciam o trabalho de vocês?
Bianca: A principal influência das manifestações culturais no nosso trabalho vem do fato delas representarem e contarem um pouco da nossa história, nossa ancestralidade, e a maneira como a gente se manifesta. Para nós, todas as manifestações culturais são importantes mas, obviamente, as brasileiras são as que nos tocam e a gente fala que Paraty é a manifestação que move a gente. Todo esse artesanato que ensina muita coisa, o tempo de cada coisa, de preparar... Sem contar que são tradições e um tipo de conteúdo que é passado única e exclusivamente através da vivência e da oralidade. A gente não encontra em livro, não existem métodos específicos, existem experiências e as experiências que são vividas. Mais diretamente, a gente pode citar a ciranda. Além dessa parte mais teórica e de representatividade, existe a parte prática dessas influências. A musicalidade, os instrumentos, o modo de pensar no cotidiano. Tem a pesca, também, que ensina a obter o tempo certo, a hora certa de jogar a rede, até de construir a própria canoa, colocar a canoa na água, pescar, cozinhar, enfim. A gente pode dizer que a influência vem da própria existência e da permanência dessas manifestações culturais que são vivas e que são mantidas há muito tempo. 

- Como exercer o respeito ao tempo e ao modo de fazer artesanal trabalhando com arte num mundo que exige cada vez mais agilidade?
Wanessa: A gente acha que o maior exemplo de respeito ao tempo de cada coisa vem do entendimento de que o trabalho nunca está acabado, ele está sempre vivo, em movimento. Então, cada dia é um dia, cada apresentação é uma apresentação, além do que sempre podem entrar coisas novas a partir de novos entendimentos que vão surgindo ao longo dos ensaios, ao longo das apresentações. O processo não tem fim, ele é eterno, e por mais que existe essa cobrança de prazo, de resultado, a gente procura se atentar bastante à maneira como a gente faz, como fazer, como a gente encena, como a gente lida com as coisas e como entendemos em nós todos os processos e conteúdos que a gente vai trabalhar. Isso é o que mais importa pra gente. É óbvio que é difícil trabalhar em outro ritmo, mas não é impossível. Tudo vem dessa forma como a gente encara o que a gente tá fazendo ali naquele momento. Teatro tem o tempo da vida, tem o tempo do amor. Só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas.

- Como tem sido, para a Companhia Biwã, este período de quarentena?
Wanessa: A gente não está se preocupando muito e nem se exigindo ser produtiva, mas estamos com mais disponibilidade para pensar novos projetos. Então, diria que estamos trabalhando mais na parte de escritório da Companhia, pensando mais nessa parte de produção. Como a gente já citou, a companhia faz tudo: escreve seus próprios textos, se produz, a gente faz tudo. Então, acho que na correria do dia a dia a gente acaba não tendo tanto tempo para mergulhar tanto na escrita dos projetos. Agora, estamos focando nessa parte, aproveitando essa disponibilidade de home office, pensando em novas possibilidades e novas coisas para serem feitas. E a gente entende também que este é um período para pensar muita coisa, de como se trabalha no mercado, como a gente faz, o que a gente está fazendo e com certeza vai ser muito diferente quando tudo voltar. A gente está parada totalmente também, além dos nossos espetáculos, a gente dá aula, a Companhia também trabalha como escola e está tudo parado. Muito do que vem se pensando também é no que vai ser feito, nessa maneira de recuperar esse tempo sem trabalho. A gente tem trabalhado, mas não tem se cobrado tanto assim sem ser produtiva. Em relação à Companhia a gente vem, sim, dando um gás, mas também aproveitando para pensar o lado pessoal. 

- Em tempos de crise, a arte reforça sua importância ou tem sua relevância questionada?
Wanessa: Para mim, a importância da arte é sempre questionada. Não necessariamente a gente precisa de uma crise ou de uma pandemia para que isso aconteça. Esse questionamento vai sempre estar presente em qualquer circunstância. Agora na quarentena eu percebo que está havendo um aumento no consumo da arte, mas isso não quer dizer que ela está sendo valorizada. A gente só vai saber isso, ver esse resultado, se está sendo ou vai ser valorizada ou não, e se esse aumento de consumo significou alguma coisa, depois de um tempo. Acho que depois que isso passar, se esgotarem todos os teatros, esgotarem todos os ingressos de tudo, acabar livro, CD, tudo lotar, esgotar, ai a gente vai saber que está sendo valorizado. Senão, só aumentou o consumo, mesmo. 

- Qual a importância da arte para além do trabalho?
Wanessa: Tudo depende de como você encara a arte e tudo que ela significa e representa para você. Existem vários tipos de entendimento, por isso existem vários tipos de linguagem. Para mim, arte é uma necessidade, uma forma de liberdade, de expressão, de sentimento, de afeto. Arte é possibilidade. Então, é uma necessidade. 

Bianca: Concordo com tudo. Arte é vida, é sangue, a gente precisa dela, é natureza, é água, é o som. Como a matemática, ela tá em tudo. Hoje, a gente tem a arte na quarentena e graças a ela a gente não está surtando completamente. 

- Como a arte pode ajudar a reconstruir o mundo?
Wanessa: Também penso que vai desse entendimento do que ela representa e significa. Para mim, a arte representa o mundo, questiona e traz possibilidade. E acho que a partir disso, ela sim é capaz de reconstruir e refazer, porque para mim funciona assim. Ela apresenta e ela fala: as coisas são assim, mas podem ser diferentes. Na minha opinião, ela pode reconstruir o mundo, mesmo que seja só pelo tempo de duração de uma peça, de um filme, ou aquele tempo que você está de frente para um quadro, o tempo que você está ouvindo uma música, não importa. Mas, reconstrói, sim.