Publicado em 12/06/2020

"A cultura caiçara me fez o escritor que sou"

Um dos caminhos para se conhecer um lugar é por meio da arte de quem vive ou viveu ali. Nesse sentido, a poesia de Flávio de Araújo, 44 anos, é um convite para adentrar o universo paratiense. O poeta fala dos hábitos, tradições e histórias da região os nasceu, como nos versos do poema Credo Caiçara

Creio no remo de guacá, no samburá de Imbé / no náilon 0.40, na faca amolada em pedra de cachoeira. / Creio na tribuzana, nos primeiros ventos do sudunga / nas gaivotas sobre as traineiras. / Nas modas de viola, rabeca e sanfona. / No mergulho da tesoureira.

De família originária da região costeira - Praia do Sono - Flávio cresceu na zona urbana. "Nasci no período em que Paraty se deslumbrava com a abertura da BR 101, tendo a família se habituando à vida na cidade após terem a contra gosto saído da zona costeira”, conta. Para ele, sua obra está intimamente ligada à cultura caiçara. Nesta entrevista, ele fala da cena literária de Paraty, da rotina de trabalho e do período de quarentena. 

- Você fala sobre a região costeira. Você é, exatamente, de qual parte?
Sou nascido na cidade com saudade de uma vida plena que não vivi na costeira. Meus pais, nascidos e criados na Praia do Sono, ao se casarem acabaram por acompanhar meus avós maternos que decidiram morar no Mamanguá. Mas aí veio a decisão triste, e também feliz, que mudaria a vida da família inteira, foi resolvido que todos iriam para a cidade onde cada um ganhou o seu quinhão após a venda da terra (e isso me dói muito), podendo assim comprar um pedacinho de terra na cidade. Eu sou de uma geração que não teve direito de escolha, se eu pudesse decidir teria ficado, mas é uma opinião egoísta de certo modo. Ganhos e perdas, e assim a vida de cada um foi moldada, eu tentei estar o máximo na Praia do Sono com a família paterna, e assim a vida foi me levando. Praia do Sono e cidade, minha vida, nossas vidas, formam um só diamante, como já disse Drummond.

-  Como é sua rotina de escrita? 
Comecei a escrever qualquer coisa durante a escola, e qualquer coisa escrita já é muita coisa, tinha treze anos acho. A escrita sempre foi um desafio, e inicialmente estava atrelada a estética, a necessidade de acertar os desarranjos gráficos era maior do que a ordenação das ideias; hoje vejo quanto tempo a escola perdeu para que eu conseguisse adestrar minha caligrafia, jamais conseguiram. Quanto ao ordenamento das ideias, algum êxito aqui e ali, relapso algumas vezes, relaxado em tantas outras, mas enfim, toda ordem requer devotamento, mas só o caos se auto estabelece, e eu sou o caos. Não tenho rotina para escrever, eu fujo da concepção de um dia produtivo para escrita, é isso que preciso apenas, de uma naturalidade para que ela aconteça, sem urgências, sem precipitações, sem time ou obediência. Não escrevo todo dia e nem leio todo dia, certamente um erro bem grosseiro a um escritor, mas a escrita se desenvolve também assim, de formas breves, de construções psicológicas que dão lastro à escrita física.


- De que modo a vida em Paraty influencia o seu trabalho? 
Paraty é uma cidade incrível para as artes em geral, ela possibilita um encantamento estético diversificado, não que isso seja fundamental à arte, os escombros sempre deram sustentação à boa literatura e às artes plásticas, dentre tantas manifestações. Mas se tratando de Paraty não é a toa que a cidade se tornou sinônimo de cultura no Brasil, temos grandes escritores, do passado e do presente, com certeza a cidade tem seu quinhão de impacto. Sou reflexo do que a cidade foi e do que é a cidade: as pessoas, a cultura, a tradição, e os elementos externos, por também ser uma cidade cosmopolita. A cultura caiçara, em todo o seu contexto, e o mundo fora desse universo, me fez ser o escritor que sou hoje.


- Como você percebe a cena literária em Paraty? Há eventos suficientes para contemplar os escritores locais?
A cena literária acontece, há grupos organizados de escrita e leitura, saraus, também encontros de slam, competição em que poetas apresentam textos originais, agregando jovens talentosíssimos, diante disso vejo uma necessidade de mais espaços e de reconhecimento de quem faz literatura na cidade. O grande diferencial que temos é o Sesc, pois traz durante todo o ano uma diversidade de escritores para debates, oficinas de criação literária, clube de leitura. O Sesc nesses tempos tenebrosos tem cumprido a missão de ser o Ministério da Cultura e que bom que temos uma unidade em Paraty. 

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- Você tem usado o tempo da quarentena para escrever? Como este momento vem influenciando seu trabalho?
A quarentena tem sido uma doideira!  No início eu quase entrei em pânico achando que ao abrir uma caixa de leite o vírus pularia na minha cara, eu fiquei na neura de limpar tudo, e certamente isso não é lá um absurdo, o vírus está entre nós, todo cuidado é pouco. Eu tenho me dedicado ao trabalho, faço leituras, escrevo, leio, mas tudo isso na parte da tarde, pois de manhã eu sou o cozinheiro da vez.  Estou com muito medo do que está acontecendo e das implicações macabras, quero todos comigo, celebrando a escrita e a arte dos encontros. 

- De que modo a arte pode nos ajudar a recriar a realidade?
A arte pode situar o homem no mundo, como mote de contestação desse mundo, também para torna-lo possível. Ferreira Gullar (escritor) já dizia que a arte existe porque a vida não basta, discordo. A arte existe porque a vida a transborda, e a vida basta, pois não há vida, qualquer vida, que não esteja repleta de arte: um homem trôpego, um cavalo no pasto, uma mulher que chora. Arte e realidade dialogam desde a eternidade, como nas cavernas quando a mulher ao acompanhar as flamas da fogueira acabou por replicar em seu próprio corpo a dança do fogo. 


- Você tem dicas de leitura para quem está em casa agora?
A dica de leitura é Tubarão, de Peter Benchley, um retrato fiel dos nossos dias onde a fera ensandecida é o terrível coronavírus; e a apatia e bizarrices dos governantes de Amity, balneário ficcional em Long Island, comorbidade idêntica a do presidente do nosso país. 

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Leia, abaixo, o poema Credo Caiçara, de Flávio de Araújo:
Creio no pirão de gonguito com banana bacubita.
Na roça de feijão guandu, na cepa de mandioca
de sete ramas, no doce da cana caiana,
no limão em puxa-puxa.
Creio no café de garapa, na cavala salpresa.
No cará com melado, no desbulhar do milho,
no manuê de bacia e no cardo de caranha.
Creio no poder das ervas:
No chá de boldo amargoso no gorgomilo, no chá de losna,
no banhado de arnica e na santa Maria socada
com sal grosso e cânfo.
Creio na canoa de voga, no cerco na espia,
no espinhel preso à pôita, na rede de minjuada no lagamar.
Creio no remo de guacá, no samburá de imbé,
no náilon 0.40, na faca amolada em pedra de cachoeira.
Creio na tribuzana, nos primeiros ventos do sudunga,
nas gaivotas sobre as traineiras.
Nas modas de viola, rabeca e sanfona.
No mergulho da tesoureira.
Creio na rede tingida em casca de jacatirão e aroeira.
Na tainha com barriga de ova, no jirau de taquara,
no varal pra secar o peixe escalado, no caniço de bambu japonês.
Creio na voz do Brasil, na cabeça de maré,
no barro pro estuque e no covo.
No gemido do gaturamo e na malhação do Judas.
Creio no óleo de babosa, nas cantigas de roda,
nos barquinhos de cacheta e cajuja.
No olho dágua, no cachorro paqueiro.
Creio na chinela de dedo, na galinha botadeira.
Creio no furo do busano, no forneio de farinha,
No pargueiro, no calafeto de betume, nas lulas no zangarêio.
Creio na foice Tremontina, no bodoque de goiabeira,
No trabissero de marcela.
Creio no borrachudo, na lagosta pitu,
No guaiá, no marisco sururu.
Creio na corosena do fifó, na gadanha e na enxó.
No azulado do perau, no clareio depois do fuzilo.
Creio em Deus pai,
Creio em Deus filho.
E no Espírito Santo tumém.